Desde essa infância solitária que o pequeno Carl Gustav sentia em si duas personalidades ou, eu diria, dois centros de Consciência: a de um menino rude, desajeitado e desadaptado socialmente que frequentava a escola sem grande destaque, ou um de um ser mais antigo e sábio, conectado ao Tempo e à Eternidade. Ele batizou essa primeira personalidade de seu número 1. A outra personalidade era seu número 2.
Com o passar dos anos, o menino foi virando um jovem ainda pouco social, mas com melhor desempenho acadêmico. O seu número 1 se interessava por Ciências Naturais e Biologia. O seu número 2 apreciava a Filosofia e as grandes ideias. O seu pai era um pastor protestante pobre, frequentemente deprimido, que morreu quando ele iniciava a faculdade de Medicina. Foi com grande sacrifício e privação que o jovem Jung conseguiu concluir a faculdade. O seu número 1 queria fazer alguma especialidade clínica ou cirúrgica que iriam dar mais conforto econômico para ele e sua família restante. Mas ao perceber que a Psiquiatria daria um espaço para o número 2, conciliando a Ciência Médica com a Filosofia e seus estudos de fenômenos espíritas, muito em voga na transição do século XIX para o XX, então ele não teve dúvidas, para estranheza de professores e família. Ele iria ingressar naquela especialidade jovem e imprecisa, com pacientes crônicos e poucos recursos terapêuticos para ajudá-los. Caso o leitor não saiba, eu sou psiquiatra também, de orientação junguiana e trago em mim um sentimento muito profundo de gratidão não só por Carl Jung, mas pelos psiquiatras e estudiosos da época. Um deles, Karl Jaspers, chegou a viver dentro de um hospital psiquiátrico e descrevia, descrevia, tudo o que via para tentar entender a complexidade do sofrimento e as dificuldades de achar caminhos de tratamento para aquelas pessoas. Ainda hoje eu ouço alguém falando que “não vou ao psiquiatra porque não sou louco”. Isso se deve provavelmente a esse cenário histórico onde pouco ou nada se podia fazer pelos pacientes, que viviam institucionalizados em manicômios, um modelo que começou a ser questionado e transformado há menos de cinquenta anos.
Os pesquisadores, no tempo de Jung, descreviam com muito pormenor as funções mentais e as alterações que viam diante de seus olhos. Jung logo se interessou pelo trabalho de um neurologista vienense chamado Sigmund Freud, e deve ter sido um dos primeiros psiquiatras a aplicar na clínica as ideias de Freud, de quem se tornou grande amigo e discípulo e, alguns anos depois, dissidente e desafeto. Mas esse não é o assunto desse artigo. Jung passou a primeira metade se sua vida atendendo às demandas de sua personalidade número 1: casou com uma moça muito rica que também viraria uma analista Junguiana, Emma Jung. Teve cinco filhos e tornou-se um psiquiatra e psicoterapeuta mundialmente conhecido. Com o rompimento com Freud, passou por um período de grande isolamento e angústia, até que mergulhou dentro de si mesmo para dar à luz a seu sistema e compreensão da alma humana, a Psicologia Analítica. Pode-se dizer que ele mergulhou no seu número 2, que foi tomando uma dimensão cada vez mais profunda e importante na sua vida.
Hoje a Neurociência ajudaria muito Jung a entender o que se passava em sua mente: o número 1 é um tipo de processamento muito ligado ao lado esquerdo do nosso Cérebro: ele é organizado, objetivo e lógico, com decisões racionais e sequenciais. É uma parte do Cérebro extremamente comprometida com a nossa sobrevivência e passagem dos nossos genes adiante, de preferência em boas condições competitivas. Essa é a má notícia, gente: essa parte do Cérebro está se lixando para a nossa Felicidade: ele quer segurança e domínio de território, o resto não é prioridade.
O número 2, por sua vez, é o lado direito do Cérebro, esse sim mais afetivo, intuitivo e com capacidade de relaxamento e atenção amorosa. Esse Cérebro está mais conectado à sabedoria e à visão ampla do mundo e do tempo. As pessoas que desenvolvem, a muito custo, esse lado do Cérebro, costumam ser aquelas que conseguem enxergar o futuro no meio do barulho e da fúria de nossos medos e rancores.
Jung, na medida em que envelhecia, foi deixando para trás sua personalidade heróica e algo desagradável socialmente, seu número 1, para virar o sábio de Kusnatch, o mestre de muitas e talentosas gerações de terapeutas e curadores. O número 2 realizado.
Numa famosa entrevista do já idoso professor Jung à BBC, o repórter perguntou se ele acreditava em Deus: Jung respondeu na lata – Eu não acredito, eu sei! O “Eu Sei” é uma tradução para o “I Know”, que do Inglês pode ser entendido como Eu Sei, mas também “Eu conheço”; “Eu experimentei”. A sua personalidade número 1 foi cedendo espaço para o número 2, que experimentou a eternidade, e descobriu que ele era, na verdade, a Pedra e o menino sentado nela. Ele não precisava acreditar em Deus: ele O tinha experenciado.
Nos dias de hoje, onde o número 1 engoliu o número 2 da maioria das pessoas, temos a sensação de risco, de ameaça a nossa sobrevivência, de necessidade de acumular dinheiro e segurança, enquanto o mundo desmorona lá fora. Os terapeutas, os curadores e as pessoas de bem continuam tentando fazer a união entre esses dois lados do Cérebro, na direção de um futuro de Atenção Amorosa e Entendimento. Sei que isso, hoje, parece muito distante. Mas está aqui, dentro de todos, a semente que temos que cuidar e proteger. As pessoas que conseguiram e conseguem essa síntese do número 1 e 2 que nos habitam, servem de farol nesse mar revolto que atravessamos. Hoje em dia, mais do que nunca.
*Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiano e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”
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