Dizem que os terapeutas dão especial destaque às mães. No caso de Aquiles, o assunto mãe é de grande importância.
Aquiles era filho da mamãe, quer dizer, era filho de Tétis, uma divindade do mar, uma nereida. Dessa forma, Tétis era imortal. Diziam os oráculos que, se Tétis desposasse um deus do Olimpo, teria um filho mais poderoso que Zeus, o senhor dos Raios e o CEO dos deuses olímpicos. Zeus, que não queria fortalecer a concorrência, logo fez a belíssima Tétis se casar com Peleu, um rei de uma região da Grécia. Eles tiveram um casamento legal, mas Peleu se queixava que a mulher se achava uma deusa e ela, no fundo, pensava que podia ter arrumado coisa melhor. Desse casamento, nasceu o belo e loiro Aquiles.
Tétis ficou tomada pela beleza e perfeição de seu filho, mas sabia que ele era mortal. Portanto, ela, uma nereida, nunca morreria, mas seu filho ficaria velho e morreria diante de seus olhos. Aqui que a coisa pega, em toda tragédia grega: a hora em que alguém tenta tapear os deuses para se equiparar a eles. Tétis resolve banhar seu bebê nas águas do Estige, o rio que separava o mundo dos vivos do reino dos mortos. Para segurá-lo, ela pega em seus calcanhares, deixando a parte dos tendões fora do elixir da imortalidade. Aquiles se tornou como um deus, mas com um ponto fraco, humano e mortal, em seus calcanhares.
Quando teve início a Guerra de Tróia, os gregos receberam a previsão que só venceriam os temíveis troianos se Aquiles lutasse ao seu lado. Mamãe Têmis tentou esconder o garoto, mas os gregos o acharam.
Aquiles foi à guerra e causou muito estrago no exército troiano, mas acabou, como muitos caras fora de série, brigando com o chefe, Menelau. Quando foi punido, saiu da guerra e deixou os gregos sofrerem muitos revezes. Quando mataram seu primo e melhor amigo, resolveu voltar a lutar e matou um importante general inimigo, mas tomou uma flechada envenenada em seu ponto fraco. O que sua mãe mais temia, aconteceu, e assim morreu Aquiles.
Nas eliminatórias da Copa de 94, o Brasil estava mal, perdendo da Bolívia na altitude, e com risco de ficar de fora da competição. Romário era nosso Aquiles baixinho, um jogador muito talentoso que poderia fazer a diferença, e, como Aquiles, brigou com a comissão técnica, sobretudo o velho lobo Zagallo. Atendendo o clamor de todo país, o técnico Parreira chamou Romário para o jogo decisivo com o Uruguai. Romário chegou nos braços da torcida e acabou com o jogo. Foi o maior desempenho que ele teve com a camisa amarela. No ano seguinte, também levou o time nas costas para ganharmos aquela Copa. E qual foi seu calcanhar de Aquiles? Justamente a sua péssima relação com o grupo e os treinadores. Nas duas copas seguintes, onde chegamos nas duas finais, Romário foi excluído da covocação. Tem um documentário sobre ele, chamado “O Cara” (como ele se intitulava) onde glorificam esse grande talento que, ao se julgar mais que humano, foi flechado por seus inimigos.
Recentemente, lembrei muito de Aquiles com o caso de um rapaz que, em alta velocidade, transformou seu carro caríssimo num míssil e bateu em um veículo de aplicativo, matando esse trabalhador que estava na luta para colocar comida na mesa da família. O rapaz foi retirado do local por sua mãe, que não deve ser bela como Tétis, mas correu em retirar o filho da cena do acidente. O contraste do carro de luxo, dado provavelmente pela mãe, a direção imprudente, a tragédia e a tentativa de safar o rapaz das consequências, gerou um clamor popular ensurdecedor, até ser decretada sua prisão preventiva.
Tétis tinha uma ferida narcísica de ter casado com um cara que julgava menos do que merecia. Tentou superar a sua inferioridade transformando seu filho em imortal, e o que aconteceu, na mitologia e na vida, foi que sentir-se um ungido esteve na base da tragédia, e da perda. Perdeu-se uma vida e a vida desse rapaz estará sempre marcada pelo ocorrido.
Nessa época de endeusamento de pessoas, de transformação de crianças em estrelas da mídia e de famílias projetando suas frustrações e desejos nelas, é muito bom levar o livro de Mitologia debaixo do braço, para nos lembrar que, se você ignora sua humanidade, pode acabar com uma flecha envenenada no calcanhar.
*Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiano e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”
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