Se um lugar representa os valores e a
cultura da África preservados no Recife, esse seria o Pátio de São
Pedro, no bairro de Santo Antônio, local onde há duas décadas
acontece a Terça Negra. Essa é a conclusão a que chegou a
educadora Lúcia dos Prazeres, analisando as relações visíveis e
invisíveis possibilitadas pelo encontro de cultura negra na capital
pernambucana, e registradas no livro “Terça Negra no Recife:
Narrativas sobre Dança, Música, Espiritualidade e Sagrado”, que
será lançado na próxima terça-feira, 17 de dezembro, em edição
especial da Terça Negra, no Pátio de São Pedro. A noite, que
marcará também o início das comemorações dos 20 anos do festejo,
terá apresentações do Maracatu Estrela Dalva, do Afoxé Omô Inã
e do grupo de samba reggae Raízes de Quilombo.
A publicação, fruto do mestrado da
pesquisadora em Ciências da Religião, na Universidade Católica de
Pernambuco (Unicap), reúne histórias sobre o fortalecimento da
identidade, cultura e espiritualidade de afro-pernambucanos, vividos
a partir da Terça Negra. Dividido em cinco capítulos, o livro
costura as narrativas de 12 personagens que transformaram a
experiência do povo negro no Recife e tiveram suas próprias
histórias fortalecidas pelos encontros de música e dança no Pátio
de São Pedro. São nomes como Vera Baroni, militante do movimento
negro e integrante da Casa de Religião de Matriz Africana, Ylê Obá
Aganju Ocoloiá; Marta Almeida, militante negra, coordenadora do
Movimento Negro Unificado de Pernambuco; Frei Tito, Doutor em
Antropologia, com experiência em Antropologia da Religião; e Elza
Maria Torres da Silva, sacerdotisa de matriz africana conhecida como
Mãe Elza.
Quando trata de música como território
de ancestralidade, um dos relatos apresentados pela autora é o de
Adeildo Araújo Leite, integrante do Movimento Negro Unificado (MNU),
que reconheceu sua identidade negra a partir das festas que
participava com seu pai, mestre de ciranda e cantador de coco de
roda, quando ainda criança. "Foi esse ambiente que o fez
descobrir sua negritude, a potência de seu corpo e dos ensinamentos
repassados a partir daquela brincadeira", explica Lúcia. Essa
consciência possibilitou que Adeildo já adulto, enquanto presidente
do MNU, tivesse a ideia de criar um espaço no centro da cidade que
propiciasse o encontro e a troca de experiências entre quem atuava
nas comunidades, com o povo e a cultura negros. Foi assim que no ano
2000 aconteceu a primeira edição da Terça Negra, então no Pagode
do Didi. Com o tempo, o espaço ficou insuficiente para comportar a
quantidade de pessoas, e depois de muito pleito, em novembro de 2001,
a Terça Negra teve seu primeiro momento no Pátio de São Pedro.
De lá pra cá, passaram pelo evento no
Pátio de São Pedro mais de 300 grupos, entre afoxés, maracatus,
grupos de samba, dança, hip hop, coco, bandas de samba reggae e
mangue beat. Enquanto a Terça Negra possibilitou o encontro das
pessoas com a força de sua cultura e o reconhecimento de sua
identidade, isso reverberou no surgimento de mais iniciativas. Se no
início, havia apenas cerca de cinco afoxés, atualmente são mais de
35 em plena atividade na cidade.
Foi nessa efervescência de música e
dança da Terça Negra que, em 2004, Vera Baroni teve um encontro
transcendente com a sua ancestralidade. Na entrevista para Lúcia,
registrada na pesquisa, Baroni contou que foi na apresentação do
Afoxé Oyá Alaxé - posteriormente renomeado como Oyá Tokolê Owo
-, que ela recebeu o Idé, bracelete utilizado por Iansã. "Por
meio de sua música e dança, o afoxé transmite para as pessoas as
energias da mitologia africana. É isso que o afoxé faz. No relato
de Vera, ela confessa que antes ela tinha um certo receio com a
religião de matriz africana, e naquele momento em
que ela recebeu o elemento de Oyá todo
o medo que ela tinha, acabou. Ela identifica que foi a dança que fez
com que ela se reconectasse com uma história que havia perdido",
conta.
Ao longo da pesquisa, Dos Prazeres
percebeu que, embora os grupos tenham à frente homens, muitos são
dirigidos pelas mulheres, e estas estão conectadas e fortalecidas
pelas relações com a espiritualidade e o sagrado. A espiritualidade
pode ser encontrada na história de Conceição dos Prazeres, filha
de Yemanjá, fundadora do projeto cultural Terça Negra, que em suas
vivências conseguia manter unidos e fortalecidos os grupos
envolvidos com a realização do evento. Uma das narrativas do
sagrado é a de Dona Janete, atual presidente do Maracatu Leão
Coroado, que junto à sua calunga, "Dona Isabé", encontra
forças para conduzir o grupo, fundado nas imediações do Pátio de
São Pedro.
Ainda que a linha entre um e outro
sejam tênues, Lúcia explica que a espiritualidade diz respeito a
uma relação reconhecida pelos ambientes e códigos sociais. Já o
sagrado, vai além: "Quando se fala da relação com o sagrado,
se fala de como uma pessoa comunga, se conecta, com uma força que
não é vista, que não é palpável, é sentida. Esse sagrado não
está só no espaço religioso, ele permeia também o espaço de
trabalho. O sagrado é qualquer movimento interior que lhe leve à
transcedência. Então, uma música pode lhe elevar a tal ponto que
você atinge outra dimensão. E esse sagrado eu encontrei na Terça
Negra, já no percurso da pesquisa", explica.
A dissertação possibilitou que Dos
Prazeres percebesse na Terça Negra o encontro de todos esses níveis
de relações, de maneira integrada e complementar. Em um trecho do
livro, a autora descreve o encontro como sendo um "laboratório
de produção, realimentação e disseminação de conhecimentos e
saberes artísticos, culturais e religiosos oriundos da herança
africana de nossos ancestrais. Conhecimentos e valores
ressignificados pelas experiências vivenciadas nos bairros/sedes das
entidades participantes da Terça Negra, que se alimentam e ao mesmo
tempo são disseminadoras dessas ações para todos os grupos do
Recife/Região Metropolitana/Pernambuco na perspectiva da formação
de um grande território de cultura negra, com base nos valores
civilizatórios africanos".
A ESCRITORA - Nascida e criada e no
Morro da Conceição, na Zona Norte do Recife, Lúcia dos Prazeres, é
pedagoga, com mestrado em Ciências da Religião pela Universidade
Católica de Pernambuco, e tem duas especializações: em Educação
e Psicomotricidade e em Arteterapia e Linguagens Corporais. Desde
cedo, aprendeu a valorizar os saberes preservados pelos
afro-descendentes, assimilando os ensinamentos e o repasse de
histórias por meio da valorização do outro, da cultura popular, da
contação de histórias e dos significados de sonhos e provérbios.
Serviço:
O quê: Lançamento do livro “Terça
Negra no Recife: Música, Dança, Espiritualidade e Sagrado”, de
Lúcia dos Prazeres, com apresentações do Maracatu Estrela Dalva,
do Afoxé Omô Inã e do grupo de samba reggae Raízes de Quilombo.
Quando: Terça-feira, 17 de Dezembro, a partir das 19h
Onde: Pátio de São Pedro, bairro de
Santo Antônio, Recife – PE
Acesso Livre
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