terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Um livro para cada experiência de vida: o encontro com a finitude em "A sombra do vento"



A paisagem diante de seus olhos contrastava com a angústia que dilacerava sua alma, no entanto, a placidez do seu rosto escondia a tormenta que a consumia por dentro.
Sorriu ao contemplar as águas agitadas, cor de barro, nas quais navegava. Era uma sensação de pertencimento, reconhecimento. Sabia que ali, havia pouco, uma tempestade devastara tudo, tal como acontecera com ela. Mas não havia como fugir; às vezes, permanecer na dor é a única escolha possível, uma vez que o medo de não existir nada além é quase palpável. Contudo, pensou, a natureza sempre encontra um jeito de refazer-se. Mas e ela? Conseguiria cura-se também?


Pousou o olhar no livro que descansava em seu colo. Na capa, o título La sombra del viento exibia palavras que não pertenciam à sua língua pátria, mas, sim, ao idioma escolhido por seu coração. “Coisas de outras vidas”, pensou.


A narrativa, assinada por Carlos Ruiz Zafón, a fez refletir sobre o quão assustador pode ser esquecer-se de algo, aquele momento em que uma lembrança se torna embotada, porque, longe de ser libertador, é algo que aterroriza, pois ratifica uma certeza: a finitude da vida.


Daniel, o protagonista da narrativa, é levado por seu pai ao cemitério dos livros esquecidos. Lá, ao escolher uma obra de forma aleatória, ele vê-se envolvido numa trama orquestrada por alguém que, aparentemente, deseja destruir todos os livros escritos pelo enigmático Julián Carax, autor fictício. Ambientado em uma Barcelona gris, na década de 1940, o romance vai além da atmosfera de mistério que pontua diálogos bem construídos e intensos, propondo ao leitor uma reflexão sobre um tema inquietante, mas essencial: nossas escolhas e o quanto nos é lícito sofrer por elas.


Com o pensamento em fuga, trouxe da memória o trecho do livro que sabia de cor: “Na altura em que a razão é capaz de compreender o sucedido, as feridas no coração já são demasiado profundas”. No momento, ela vivia toda a intensidade daquelas poucas palavras, então, desejou, mais uma vez, retroceder no tempo. Em seu desespero, imaginava se poderia esvaziar o rio à sua frente e recuperar sua essência, que, simbolicamente, jazia lá no fundo, mas se deu conta de que para certas coisas não há conserto. Não se pode mudar o que aconteceu, voltar atrás, tampouco terminar sempre uma história com final feliz. Agora, teria que acomodar aquela agonia em algum lugar dentro de si, de difícil acesso, debaixo de tantas outras dores. E, já que era impossível extirpar certos sentimentos, restava-lhe acostumar-se com a incômoda presença deles, porém sem dirigir-lhes sequer um olhar, porque, se fossem revisitados, voltariam a machucá-la.


Ao olhar pela janela do barco onde estava, viu outra embarcação diminuta, frágil, porém ágil. Ali, ela se deu conta de que era como o pequeno barco, que, mesmo diante da imensidão daquelas águas escuras, revestia-se diariamente de resiliência, tornando-se forte o bastante para enfrentar as ondas, mas com a consciência de se render ao inevitável: um dia, sucumbiria também às intempéries.


Aquele momento fugaz perdeu-se quando um raio de sol se refletiu nas águas, encontrando o seu olhar. Ela voltou a ter esperança, lembrou-se de sua juventude, da força que sempre carregava consigo nos momentos mais difíceis, ainda que agora fosse diferente; estava assombrada, rota por dentro. Não havia como se recuperar. Aquela dor lhe trouxera medos que ela não conhecia.


Num ato inconsciente, levou a mão ao colo buscando o livro de páginas já desgastadas. Ao continuar a leitura, surpreendeu-se com uma descoberta: Zafón, de uma acuidade singular, acenava com a possibilidade das segundas chances, mesmo diante de perdas inevitáveis.


Ela sorriu novamente, agora com um quê de expectativa no ar. O barco seguia, assim como sua vida também precisava encontrar um novo rumo. Fechou o grosso exemplar e decidiu prestar atenção no caminho que se descortinava à sua frente. Ainda havia tempo para apreciar a paisagem. A chuva que ameaçava cair, assim como suas lágrimas, tardaria a reaparecer.


 


Tânia Lins é formada em Administração de Empresas e pós-graduada em Língua Portuguesa e Comunicação Empresarial e Institucional. Atua há quinze anos na área editorial, com experiência profissional e acadêmica voltada à edição, preparação e revisão de obras, gerenciamento de produção editorial, leitura crítica e coaching literária. Atualmente é coordenadora editorial na Editora Vida & Consciência.

4 comentários:

  1. Tania, lindo o que escreveu, não tenho palavras para dizer o quanto.Parabens vc e /Maravilhosa,bjos

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  2. Muito lindo Tania parabéns, vc escreve muito bem

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  3. Oi Tânia, lindo texto. Não dá pra parar de ler. Ele nos atrai pra a leitura completa. Parabéns 👏🏻

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  4. Parabéns Tânia! Seu estilo literário é muito bonito. As palavras fluem com muita suavidade. Fiquei encantado, certamente virá uma linda história! Tô aguardando.

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