O que muita gente não conhece é o tipo de psicoterapia que, muito provavelmente, influenciou Bert Hellinger: a Gestalt Terapia. Mas, deve-se estar perguntando o leitor ou a leitora que abriu, acidentalmente ou não, esse artigo: o que faz esse texto após o título acima, de um filme recém lançado e provável candidato brasileiro ao Oscar – “Ainda Estamos Aqui”, baseados na obra de Marcelo Rubens Paiva? Já vou explicar.
Gestalt quer dizer “forma completa”, ou “figura completa”. Em terapia, é como o fechamento de uma ferida que ficou aberta. Vou dar um exemplo pessoal e canino; quem já leu essa coluna deve saber que eu sou um inveterado cachorreiro. Uma doguinha querida era Chiara, uma boxer meio pilhada que teve infelizmente aos sete anos um Câncer comum na raça, o Mastocitoma. Quando seu sofrimento ficou intolerável, levei a Chiara para encerrar seu sofrimento. Ela tomou uma injeção pacificamente enquanto eu cantava uma música no seu ouvido. Fiquei reconfortado por ter estado lá com ela. E vida que segue. Alguns anos depois, num curso de Processamento de Memórias, a cena me voltou como um flash e eu pude, finalmente, chorar a tristeza de ter passado por aquilo. Pode-se dizer que a Gestalt, que estava aberta, se fechou: eu levei o luto no peito e pude, anos depois, encerrar aquela vivência. Essa é a base da Gestalt e das Constelações: chorar perdas, pedir desculpas, entender histórias pessoais e familiares. Realizar fechamentos de feridas.
“Ainda Estamos Aqui” é um filme sobre feridas abertas numa família de classe média, no início dos anos setenta. O ex deputado Rubens Paiva é levado de sua casa, sem intimação ou mandato judicial, para interrogatório por agentes à paisana. Foi o começo de uma via crucis de desinformação, angústia e perda da família de Eunice Paiva (trabalho fantástico, inesquecível, de Fernanda Torres), com a violência impressionante de um pai de família sendo abduzido de sua casa por suspeita de colaboração com a luta armada. E ele realmente colaborava e protegia amigos perseguidos pela Ditadura Militar. Mas nunca participou da luta armada.
Vou fazer um micro spoiler, que eu espero que incentive as pessoas a verem esse filme lindo de Walther Salles: algumas décadas depois do desaparecimento de seu pai, a família se reúne para recuperar fotos e lembranças para Marcelo, tetraplégico desde a adolescência por um acidente de mergulho, escrever o livro que deu origem ao filme. No final do almoço, Marcelo conversa com a irmã, sobre quando sepultaram internamente seu pai, realizando que não voltaria: Marcelo quando viu sua mãe doar as roupas de seu pai, sua irmã quando eles saíram meio fugidos do Rio de Janeiro, para reconstruir a vida em São Paulo. Cada um com seu tempo.
O Luto sem fechamento talvez seja dos mais dolorosos de todos. O parente desaparecido. O pai que abandona a família e some no mundo. O crime que oculta a verdade sobre uma morte. Por mais que, racionalmente, as pessoas envolvidas saibam que a pessoa não vai voltar, tem um tipo de Memória que sempre vai deixar uma esperança de que ela vai retornar. Cada toque no telefone pode ser quem eu estou esperando. A Gestalt não se fecha. O Luto fica sem fechamento, muitas vezes por toda a vida. Tem um filme de um cachorro que passou o resto de sua vida indo para uma estação de trem esperar seu dono, que tinha morrido. Esse é o aspecto mais doído do luto sem fechamento: é a espera eterna.
“Ainda Estamos Aqui” é a celebração de uma família que, através da força inacreditável da mãe e do amor que unia a todos, resistiu à tragédia, à violência e à falta de sentido para buscar justiça e fechamento das feridas. Na sala lotada que eu assisti o filme, aplaudimos o mesmo por alguns minutos. Com meus olhos embaçados de lágrimas.
*Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiana e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”
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