quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Trecho do conto "Neve Vermelha", do livro "Fins & Feriados"



Por *G. H. Oliveira — Um minuto — o líder alertou a tropa, jogando o charuto no chão. Os doze subordinados se aprontaram em resposta. Três em cada parede, cada um em uma janela, colocando tampões no ouvido e forçando a vista para enxergar além.
A audição encoberta abafava os sons exteriores, amplificando o que havia dentro dos soldados: as batidas rápidas do coração quase a ensurdecê-los, os pensamentos em pequenas explosões, os olhos atentos aos ponteiros da Catedral.


Cinco segundos. Santo pensou em sua esposa e no filho, pedindo ao Deus-Verdadeiro para protegê-los no esconderijo.


Quatro segundos. Boca tentou fazer alguma oração, mas se perdeu nas palavras e terminou repetindo: “Por favor, não me deixe morrer”.


Três segundos. Fumaça amaldiçoou sua bexiga por estar querendo mijar àquela hora.


Dois segundos. Silêncio não tinha medo, nem ódio, nem nada. Apenas a plena convicção de que tudo que importava era o ali e o agora. Um segundo. Garoto suspirou fundo.


O sino da Catedral badalou. O vilarejo se uniu em quietude. A princípio, nada mudou, o que fez alguns novatos se encararem. Talvez não acontecesse naquele ano. Uma ideia tão bonita que era impossível não rondar a imaginação. Era sempre assim: o falso alívio antes do caos.


O Garoto sentiu um sabor amargo no fundo da boca, depois um cheiro de enxofre no ar. O chão pareceu mover-se debaixo dos pés, como se a gravidade quisesse levá-lo para cima ao invés do contrário. O vento tinha jeito de morte. Chegava sutil e contínuo, fazendo as árvores balançarem, estrangulando-as no caminho, secando as folhas até todas caírem sem vida. As lufadas de ar invadiam o uniforme dos soldados, despertando calafrios e ficando gradativamente mais pesadas. As chamas das tochas diminuíram, e o menino notou que era difícil respirar.


Em sua luta contra o próprio corpo, foi o rugir dos céus que o trouxe de volta. Olhou para cima procurando um trovão, mas o espetáculo acima de sua cabeça era mais tenebroso. As nuvens se espalharam como fumaça espessa, movendo-se feito ondas turbulentas, devorando as estrelas no caminho e tingindo a noite de vermelho com o sangue delas. Um floco de neve caiu na ponta de sua espingarda, o branco substituído pelo tom escarlate manchando tudo o que tocava. A prova de que era real. Não teria mais volta.


A nefasta certeza veio acompanhada pelo gargalhar das bruxas.


Um filete de sangue escorreu pelos ouvidos dos soldados mesmo com os tampões. No céu, uma silhueta preta surgiu no horizonte: a figura lembrava um morcego, porém, conforme se aproximava da Muralha, sete pares de olhos brilhavam em meio à escuridão. Na noite amaldiçoada, as mulheres-demônio podiam voar, contanto que estivessem unidas.


— Atenção! — berrou um dos comandantes na Muralha. Alguns subordinados apontaram as espingardas, outros armaram as catapultas. — Preparar! — Soldados incendiaram as pedras encharcadas de óleo. — Fogo!


Todos assistiram ao primeiro arremesso. Um cometa solitário voando em direção às bruxas apenas para ser desviado com facilidade.


Elas soltaram mais uma risada, fazendo os músculos dos soldados se enrijecerem. As trevas estavam cada vez mais perto.


— Fogo! Fogo! Fogo!


Mais três pedras foram lançadas. A primeira obrigou o vulto a desviar para a esquerda. A segunda passou de raspão. A terceira cumpriu seu objetivo. Chamas engoliram as sombras por um instante, um grito feminino ecoou pelos ares, os soldados comemoraram. Até que o vulto se dividiu em dois e investiu contra eles.


O Garoto assistiu a tudo acontecer em uma fração de segundos: a chuva de tiros dos soldados brilhando como estrelas, as balas sumindo como se engolidas por um buraco negro, as trevas envolvendo os homens até não conseguir mais enxergá-los. Quando a escuridão voltou a se mover, restavam apenas tochas apagadas e cabeças decepadas.


O restante do pelotão recuava, atirando, movido pelo desespero mais do que pelo treinamento. Alguns desistiram, pulando para a morte certa, torcendo para que a queda fosse mais gentil do que as mãos demoníacas. Outros tentavam vingar os companheiros, em um nobre esforço. Todos tinham o mesmo destino.


Por todos os lados. Mais silhuetas surgiram no céu, tantas que era impossível contar. Algumas desciam para continuar atacando as tropas na Muralha, distraindo as defesas do vilarejo a fim de que as demais voassem por cima. Garoto espiou pela última vez a Estrela de Sete Pontas da Catedral, fechou os olhos e rezou.


O começo de uma guerra é como o início de uma tempestade. Você vê as nuvens negras, conta as primeiras gotas, mas, de repente, o céu desaba, relatou seu pai.


As trevas entraram aniquilando pelotões tão depressa que parecia mero fruto da imaginação. Um pesadelo do qual não se podia acordar.


Quando isso acontecer, não deseje que as coisas sejam diferentes. Não pense no passado ou no futuro. Em quem você ama ou não. Concentre-se no instante, olhe ao seu redor e aperte o gatilho quando puder.


Garoto as estudou conforme uma revoada desceu ao chão. Os soldados abriram fogo, mas as balas refletiram no longo vestido preto que as bruxas usavam. As de olhos azuis abriram um largo sorriso, como se os tiros fizessem cócegas, deixando à mostra seus dentes afiados. Avançaram contra eles usando as unhas pontiagudas para desmembrá-los.


As outras nem precisavam chegar tão perto. Tinham serpentes vermelhas tatuadas no rosto que brilhavam ao se movimentarem. Uma dança que atraía a atenção dos soldados, que só percebiam a própria sombra ganhando vida quando era tarde demais: a escuridão se enrolava ao redor do pescoço a ponto de sufocá-los. Antes que as bruxas mostrassem sinais de cansaço, a rua ficou vazia de homens e cheia de corpos.


Elas escolhiam seus próximos alvos quando um esquadrão de elite entrou em ação. Coordenados, apontaram suas armas para um prédio e puxaram o gatilho. Em vez de balas, esferas de vidro saíram dos canos, acertando as paredes e quebrando as janelas, impregnando o lugar com perfume de rosas.


As bruxas por perto desviaram de suas rotas para seguir o cheiro, hipnotizadas pela fragrância por alguns segundos, tempo o bastante para se amontoarem. Os soldados efetuaram os disparos, acionando as explosões, carbonizando-as antes que conseguissem fugir.


Garoto assistiu sua escola desabar em chamas, as ruas por onde brincava tornarem-se tapetes de sangue, amigos e conhecidos implorarem por misericórdia. Ele mantinha-se firme apesar de tudo, obedecendo aos comandos do General e atirando com a maior precisão que conseguia.


Sete mulheres-demônio se aproximavam da torre, as mãos unidas pelas teias enfeitiçadas, os olhos repletos de desejo por sangue.


Garoto atirou. O recuo machucou seus ombros. A bala passou longe.


Realizou um segundo disparo e errou mais uma vez.


Preparava o dedo no gatilho quando Santo acertou a bruxa no centro da formação. O impacto rompeu a revoada, separando-as em dois trios. Elas perderam altura e estabilidade, mas circundaram a torre. Moveram as mandíbulas, engordando a papada de um jeito sobrenatural, expandindo-a a ponto de quase arrebentar a pele. Quando abriram os lábios, cuspiram dezenas de aranhas. Ou ao menos a forma amaldiçoada de uma. Eram minúsculas e frágeis, persistentes e incansáveis. Suas patas afiadas prendiam-se às paredes de pedra, escavando até abrirem uma brecha ou derrubarem a estrutura.


Garoto recuperou o foco. Acompanhou o movimento de um dos trios, prevendo a trajetória, sentindo o sangue ferver dentro de si. Deixou a intuição lhe dizer o momento certo, e apertou o gatilho. Seu disparo acertou em cheio o rosto de uma das adversárias, fazendo a centelha de vida desaparecer dos olhos dela. O corpo inerte puxou as outras duas para baixo. Elas mutilavam as próprias mãos em desespero, tentando arrebentar a teia enfeitiçada. O chão, porém, as alcançou antes de se libertarem. Ossos quebrados e últimos suspiros. Nenhuma das três se levantou.


O menino nem teve tempo de comemorar. Mais uma leva de sete se aproximava. Dessa vez, elas arremessaram a do meio em direção à sua janela. Uma olhos-azuis flutuando para atacá-lo, deixando-o tão assustado que teve de lembrar a si mesmo que deveria reagir se quisesse sobreviver.


Ele apertou o gatilho, o tiro estalou na ponta do cano e sumiu. Então firmou a espingarda, aprumou a mira e tentou mais uma vez. O projétil acertou o peito de sua oponente, mas o vestido fez a bala ricochetear. A bruxa sorriu, passando a língua nos lábios, imaginando o quão divertido seria matá-lo.


O dedo afoito continuou os disparos. No ombro, no cabelo, nas nuvens, na barriga. Nada adiantava; precisava recarregar, mas não tinha tempo. As lágrimas se acumularam em seus olhos, a desesperança se apoderou. Gritou de raiva, de dor, de desespero. Com a boca ainda aberta, sentiu os dedos da bruxa em sua língua. As unhas cravando o fundo da garganta. A mão se fechando como uma garra. Garoto cerrou os olhos, imaginando o rosto da irmã e fazendo uma prece final: Deus-Verdadeiro, cuide dela quando eu não estiver aqui.


O estrondo do tiro soou como um amém. A bala raspou seus cabelos, e sangue jorrou em sua face. Os pés se desequilibraram, caindo; o corpo chocou-se contra o piso. Acreditou que estava morto até que a dor o lembrou de que estava vivo. Os dedos em sua garganta não se moviam mais.


— Levante! — o General ordenou. A ponta de sua arma ainda fumegava. O coração batia forte pela cena que presenciara. Não podia se deixar afetar tanto pelo Garoto. Não era prudente. — Agora!


O menino obedeceu, retirando a mão da bruxa de dentro de sua boca, jogando o cadáver baleado na testa para o lado. Ele pegou sua espingarda do chão, voltou para sua janela e continuou a lutar. Foi quando o líder do pelotão conseguiu respirar novamente. Girava no centro da torre, tentando ajudar os subordinados, salvando-os de mortes certas sem errar nenhuma bala. No entanto, até mesmo para ele havia um limite. As bruxas continuavam a chegar, e as baixas foram inevitáveis.


G. H. Oliveira é formado em Sistemas de Informação e divide seu tempo entre códigos e escrever histórias. É autor de "O Viajante do Tempo", conto pertencente à coletânea do Prêmio OFF FLIP 2023. Agora ele lança seu livro de estreia "Fins & Feriados", que reúne cinco histórias baseadas em datas festivas. Dentre elas, a comédia romântica "Nem sempre é para sempre", que foi vencedora do Prêmio Conto Inesquecível promovido pelo Amazon KDP

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