Essa pequena história menciona a perfeição da imperfeição. Soa estranha para nossos ouvidos e para nossos conceitos de que a perfeição é a ausência do pecado, e o pecado é a sujeira, a falha, a contaminação do que deveria ser puro e sem mácula. Na minha opinião, o que o mestre estava demonstrando é o conceito impressionante da Aceitação da natureza imperfeita do mundo e da nossa experiência. Isso pode parecer óbvio, mas, em nosso tempo, em nosso século vinte e um, é um autêntico sacrilégio.
O filósofo Byun-Chul Han aponta que nossa sociedade cansada se apoia compulsivamente na ideia do positivo. Vivemos no mais-mais-mais, ou no melhor-melhor-melhor o tempo todo, bombardeados de metas e de ideias que nunca saem de nossos calcanhares. Passamos o tempo todo tentando deixar a sala perfeita, para esquecer que a função da sala é estar aberta para as experiências, as introvisões, as meditações que lá vão acontecer.
Nossa era da positividade nos empurra para uma felicidade compulsória e obrigatória, ou seja, para um estado meio permanente de infelicidade e vazio. O vazio empurra a nossa fúria pelo mais, mais, mais: mais dinheiro, mais sucesso, mais visibilidade, mais likes, mais admiração, no teatro de Personas onde estamos afundados. Quando a perfeição vier, junto com ela, vem a tal da Felicidade. Certo? Não. Não está certo.
Outra história dos anos noventa: estava começando o meu consultório, e atendia uma paciente querida que trabalhava na casa de famosos terapeutas da época. Um deles me pediu para ajudá-la: tinha um quadro ansioso difícil, e uma de suas características era uma sensação meio permanente de vazio e de angústia sem razão aparente. Isso desembocava numa compulsão alimentar também severa. Ela não conseguia aceitar o seu próprio corpo e alternava tentativas de dietas restritivas com episódios de excessos alimentares, num ciclo repetitivo e doloroso. A história que nunca esqueço foi ela que me contou: acho que ela estava numa festa, num churrasco e conversava com um dos familiares do aniversariante, que era um cadeirante. A conversa foi para o lado da angústia que ela sentia diante da vida, e o homem retrucou: “Sabe, vocês se queixam da vida e ficam infelizes com isso e aquilo, mas eu que estou nessa cadeira de rodas e tinha tudo para ser infeliz, na verdade sou o mais feliz, sabe por que? Porque eu aceito a minha limitação. Aceito a minha dificuldade todo dia. Isso me deixa em paz”. Ela me contou essa conversa em lágrimas, e a sua terapia durou mais algum tempo. Espero que a história tenha tido o mesmo impacto nela que teve em mim.
Tenho uma boa e uma má notícia para quem está lendo esse texto: a má notícia é que somos todos cadeirantes existenciais. Temos, todos, nossas contusões, nossas pernas mancas e nossas limitações com as quais vamos mais conviver do que superar. Não adianta os gurus digitais gritarem que vão te transformar no Batman ou na Mulher Maravilha.
A autoaceitação é o superpoder que está sendo negado a todos presos na ciranda do “self improvement”, ou autoaperfeiçoamento. É errado tentar melhorar todo dia? É claro que não. Eu tento melhorar todo dia, como você, que está lendo. Mas entendo que Aceitação do outro e da vida torta e do mundo torto em que eu vivo é um superpoder. Pense nas pessoas queridas, que tentamos mudar toda hora: como traria benefício Aceitar que a pessoa tem limitações, que a vida tem limitações e que é Dentro dessas limitações que vamos tentar viver. Essa é a boa notícia: a partir da Aceitação que as mudanças ocorrem.
Imagino que o rapaz cadeirante e o mestre Zen seriam grandes amigos. E eu adoraria ser amigo deles.
*Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiana e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”

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