sexta-feira, 14 de julho de 2023

Marcelo Jeneci retorna as origens com "Caravana Sairé"



Em “Caravana Sairé”, seu novo álbum, Marcelo Jeneci segue o exemplo de mestres como Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro e Gilberto Gil no sentido de dar uma nova dimensão ao forró, tirando-o da prateleira de “regional” e o colocando em seu devido lugar: música pop.
Ao fim de suas dez faixas, o ouvinte tem a sensação firme de que o passo foi dado — o gênero se afirma no disco numa linguagem de apelo internacional, acima e além das classificações. Não à toa, ainda na fase da concepção sonora do projeto, Jeneci se referia a ele informalmente pelo apelido de “sanfona sound system”.

“Caravana Sairé” começou a nascer a partir dos diálogos de Jeneci com o cineasta pernambucano Helder Pessoa Lopes, que assina a direção artística do disco. A parceria é antiga: “Dar-te-ei”, canção do primeiro disco de Jeneci, foi feita a partir de um poema de Helder. No reencontro nos últimos anos, veio o desejo de formatar um projeto ambicioso — englobando mais dois discos numa trilogia, além de um documentário — para testemunhar essa caravana que segue sentido futuro, com rodas firmadas no chão pavimentado por quem veio antes.

“CARAVANA SAIRÉ”: OS SONS

O conceito de “Caravana Sairé” começa a se materializar já na escalação dos músicos. Em vez de buscar a formação percussiva tradicional do forró, Jeneci trouxe para o disco a cozinha típica das bandas de pífano, com a autoridade da zabumba de Mestre Bastos, dos pratos de Mestre Zé Gago e do pandeiro de Ivson Santos. Juba Carvalho completa o time da percussão, com tambores que testemunham a diáspora africana que veio bater no Nordeste brasileiro. 

O paraibano Lucas Dan faz as sanfonas base, dialogando com as sanfonas melódicas de Jeneci, que também toca teclados no disco. Jeneci também assume os bass synths, cumprindo com Mestre Bastos a função do peso grave numa banda que dispensa o contrabaixo. Por fim, Bruna Alimonda compõe o coro feminino, ao lado de Juba, na tradição forrozeira.

A mixagem de Mario Caldato — produtor e engenheiro de som que já pilotou trabalhos de artistas como Beastie Boys, Bjork, Jack Johnson e Blur — arremata com um carimbo de urbanidade a pressão chão-de-terra de músicos como o zabumbeiro Mestre Bastos. Puro sanfona sound system.   

“Sou o estopim” (Antonio Barros e Cecéu) abre o disco ecoando simbolicamente no título a explosão dos bacamartes e do paredão sound system da capa. Sucesso com Marinês e Sua Gente, aqui o xote ganha certo sabor reggae com o órgão Hammond. O calor e a suavidade do canto de Jeneci estabelecem o tom do que se ouvirá pela frente, carinho de dança xamegada cantado ao pé do ouvido em sala de reboco.

A “Caravana Sairé” crava sua bandeira na península ibérica em “Lembrança de um beijo” (Accioly Neto), ao trazer ventos mouros na guitarra flamenca de Daniel Casares. Os versos afirmam a força do feminino (“Saudade já tem nome de mulher/ Que é pra fazer do homem o que bem quer”) sobre a dureza masculina (“O cabra pode ser valente e chorar/ Ter meio mundo de dinheiro e chorar/ Ser forte como um sertanejo e chorar”).

Clássico fundador não só de um gênero musical, mas de um Nordeste, “Baião” (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira) é visto sob uma perspectiva nova ao ser introduzido por xequerês, numa marcação que traça uma conexão com a música indígena. O som marcante do Hammond amplia o território demarcado, estabelecendo marcos atemporais. Um grito de Erasmo Carlos sampleado anuncia o solo do órgão:

— Minha intenção é dizer que a Jovem Guarda e Luiz Gonzaga sempre andaram de mãos dadas dentro de mim — explica Jeneci.

Em tempos em que a instituição casamento vem sendo repensada e remodelada de várias maneiras, “Amor não faz mal a ninguém” (Onildo Almeida) é declaração filosófica-ética sobre o amor frente ao compromisso, com simplicidade e profundidade da sabedoria popular: “Se casamento fosse bom/ Não precisava testemunha/ Pra que padre, pra que juiz/ Se o que faz a gente ser feliz/ É amar, amar, amar/ Amar, amar e querer bem/ Amor, amor, amor/ Amor não faz mal a ninguém”.

 “Devagar” (Jorge de Altinho) segue na reflexão sobre o amor. Tocada originalmente em festas de vaquejada num andamento mais acelerado, a canção manteve a energia, mas ganhou ritmo mais ralentado. Como pede a letra, aliás: “Devagar, que o santo é de barro”. 

“Olha pro céu” (Luiz Gonzaga e José Fernandes) e “Felicidade” (Jeneci e Chico César) aparecem juntas num arrasta-pé. A aproximação deixa evidente que o clássico de Gonzagão e o maior hit de Jeneci, de alguma maneira, vêm de um mesmo lugar. Um lugar de afirmação da alegria de incêndio e de chuva. É também a única referência ao universo junino no disco, atestando a importância da festividade no imaginário do Nordeste, porém marcando que esse imaginário, diferentemente do que o Sudeste muitas vezes pensa, vai muito além das fogueiras e bandeirinhas.   

“Vem morena” (Luiz Gonzaga e Zé Dantas), outra da lavra gonzaguiana, é costurada pelos pífanos de Junior Caboclo. Eles abrem a gravação, anunciando a canção ao mesmo tempo amorosa e sensual: “Esse teu suor sargado/ É gostoso e tem sabor/ Pois o teu corpo suado/ Com esse cheiro de fulô/ Tem um gosto temperado/ Dos tempero do amô”.

A parceria de Jeneci e Chico César reaparece em  “Oxente”, lançada no álbum anterior do paulistano, “Guaia” (2019). Pandeiro de coco conversa com Hammond e congas nessa busca do amor que “tá aqui na minha frente” — apontando, como todo o disco aliás, que a natureza do mistério é se revelar, não se esconder.     

“Cadeira de balanço” (Assisão e Lindolfo Barbosa) vem com onomatopeias (“Turim, turim, turim, turim/ É a cadeira de balanço que fazia assim”) conversar com a tradição da safadeza no forró. O resfolego da sanfona, ao mesmo tempo nervoso e macio, soa como convite — à dança, ao balanço, à malícia.  

Última canção a ser escolhida para o disco, “Ai que saudade de ocê” (Vital Farias) se fundamenta sobre a saudade — a mesma saudade que fundamenta todo o disco, como  saudade de Sairé, da origem. Uma saudade que, em vez de imobilizar ou entristecer, põe beija-flores pra voar. Em caravana.

“CARAVANA SAIRÉ”: O MAPA

Na capa de “Caravana Sairé”, Jeneci aparece vestido com a indumentária de bacamarteiro. A tradição é uma das memórias que o compositor guarda de Sairé, cidade do interior pernambucano onde passou parte da infância. A imagem, porém, traz informações que ultrapassam a mera celebração afetiva de uma festividade testemunhada pelo olhar do menino. Porque o novo disco de Jeneci é profundamente Sairé, mas é também, em igual medida, caravana. 

— Na foto da capa, tenho um paredão de sound system atrás de mim — atenta Jeneci, que cresceu em Guaianases, na Zona Leste de São Paulo. — Em vez do tradicional lenço da roupa do bacamarteiro, uso correntes e braceletes, acessórios metálicos que ilustram esse urbano metropolitano da periferia de quem vem da raiz nordestina. Também declino de usar a bota, que troco pelo tênis aerodinamizado pela rua da metrópole. É uma representação do que se colidiu em mim.

A capa, portanto, traduz em imagem a viagem que Jeneci estabelece em “Caravana Sairé”. Ou melhor, as viagens: de sua família que saiu de Pernambuco para São Paulo em busca de oportunidades, à semelhança de milhões de outras famílias; de sua música que se espalha por mil trilhas, de Arnaldo Antunes a Vanessa da Mata, desde seu disco de estreia “Feito pra acabar” (2010) até aqui; da sanfona que parte das mãos de consertador de seu pai e chegam às suas mãos de tocador;  dos bacamarteiros e das manifestações artísticas populares que eles representam; do tempo que se desloca do século XIX ao século XXI arrastando Luiz Gonzaga e sound system… Enfim, dos êxodos que marcam a cultura brasileira.

— Uma vez que entendemos o que era o projeto, a primeira providência foi pegar avião, vir pra Recife, pegar um carro e ir pro interior. Antes de pensar repertório, de qualquer coisa, fizemos viagens pra conhecer os maiores sanfoneiros das menores cidades — brinca Helder. 

A caravana pré-”Caravana Sairé” de Jeneci e Helder passou por lugares como Exu, onde visitaram a casa onde Gonzaga nasceu, e Tacaratu, onde passaram dois dias em território Pankararu e vislumbraram origens indígenas das melodias dos aboios. 

— Foi uma imersão nesse universo pra responder aquela pergunta da música de Gil: “De onde é que vem o baião?” — explica o diretor artístico. — Não só do ponto de vista afetivo, a partir das memórias de Marcelo, dessa vida vivida em meio a sanfonas e sintetizadores. Além disso, tinha a busca mesmo pela compreensão da coisa. Fomos em busca de pessoas que tocavam sanfona de oito baixos. Conversar com Onildo e se dar conta que a música “Feira de Caruaru” não nasceu espontaneamente num banco da feira, mas sim do empenho de um compositor. Todo o trabalho é costurado a partir dessa ambiguidade, entre resgate e projeção.

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